Perplexidade
Mensagens e histórias
Publicado em 25/10/2024

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.

Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran (tela) era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibís. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e sutis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.

«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez.

«Isto, por exemplo.»

«Isto o quê?»

«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.

O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente. Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os     problemas, os de aritmética e os outros.

«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»

«Não percebo.»

«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e… Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão… Nos filmes, nos anúncios… Como é a vida, afinal?»

A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.

«Ora vejamos,» disse ele olhando para o teto em busca de inspiração. «A vida...»

Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.

«A vida...», repetiu.

As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.

 

Maria Judite de Carvalho (1921 – 1998) foi uma autora marcante da literatura portuguesa que escreveu maioritariamente obras de contos. O texto que apresentamos acima é passado num cenário doméstico, com uma família reunida na sala.

A criança, assistindo televisão, vai ficando cada vez confusa, já que a realidade é muito diferente daquilo que ela aprendeu. A curiosidade e a inocência da menina contrastam com a aceitação silenciosa de seus pais, que evitam as questões.

Como são adultos e experientes, eles já sabem que a vida e o mundo são incompreensíveis, repletos de hipocrisias e contradições nas quais tentamos não pensar.

 

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